Em entrevista à edição de maio e junho da revista alemã FAQ, Adèle Haenel revelou que não pretende mais fazer filmes comerciais. A francesa de 33 anos é a estrela de dois títulos importantes do cinema LGBTQ+: Lírios d’água (2007) e Retrato de Uma Jovem em Chamas (2019), ambos dirigidos por Céline Sciamma, que também é ex-namorada da atriz.
Durante o bate-papo, Adèle explicou que sua decisão deve ser lida como um posicionamento político:
A indústria cinematográfica é absolutamente reacionária, racista e patriarcal. Estaremos nos enganando se dissermos que os poderosos têm boa vontade, que o mundo está avançando na direção certa sob sua gestão boa e às vezes inábil. De jeito nenhum. A única coisa que movimenta a sociedade estruturalmente é o sofrimento social. E me parece que, no meu caso, sair é lutar. Deixando essa indústria, eu quero fazer parte de um outro mundo, de um outro cinema.
Recentemente, Haenel foi anunciada como parte do elenco de The Empire, novo filme de ficção científica de Bruno Dumont, em que atuaria ao lado de Virginie Efira (de Benedetta) e Lily-Rose Depp. Junto com a escolha de não fazer mais parte de uma cadeia de produção artística que reproduz opressões estruturais, veio também a opção por deixar o projeto.
A revolta de Adèle com a maneira como minorias sociais são tratadas e retratadas no cinema não é novidade. Em 2019, quando integrou a turnê promocional de Retrato de Uma Jovem em Chamas, ela, ao lado de Sciamma e da coprotagonista Noémie Merlant, propôs várias reflexões críticas sobre o “olhar masculino” por parte de diretores de filmes lésbicos. Na época, o trio reforçou sistematicamente o quão problemática é a postura de homens fetichizarem cenas de sexo e afetividade entre mulheres, enfatizando o quanto essa decisão criativa machista perpetua visões importadas de filmes pornográficos e legitima violências físicas e simbólicas.
As tensões de Haenel com a indústria se acentuaram em 2020, durante a cerimônia do César, premiação mais importante do cinema francês (e, ironicamente, mesmo espaço em que, 6 anos antes, a atriz se assumiu lésbica e tornou público seu relacionamento com Céline). Naquele ano, o filme O Oficial e o Espião rendeu o prêmio de Melhor Direção para Roman Polanski.
A escolha representava um escárnio ao #MeToo, movimento contra o assédio sexual e a cultura de estupro que tomou Hollywood em 2017. Polanski não pode pisar nos Estados Unidos, onde é considerado foragido. Em 1977, o diretor foi preso após ser acusado de abusar sexualmente de uma menina de 13 anos. Ele se declarou culpado e fugiu para a Europa, onde vive e trabalha desde então. Para piorar, O Oficial e o Espião é, essencialmente, a história de um homem injustamente condenado a partir de provas falsas e renegado a viver em exílio para o resto da vida.
Indignada, Adèle Haenel deixou a premiação. Em um vídeo que viralizou, ela aparece esbravejando sobre o absurdo de recompensar uma pessoa condenada por drogar e estuprar uma adolescente, que nunca se responsabilizou por crimes pelos quais foi sentenciado.
Desde então, a mágoa com a indústria só cresceu progressivamente. Neste ano, no fim de abril, a atriz já havia dito ao periódico comunista italiano Il Manifesto que focaria seus esforços no teatro, embora estivesse disposta a abrir uma exceção para trabalhar com Céline Sciamma novamente no futuro. Já no início de maio, declarou à organização anticapicalista francesa Révolucion Permanente:
Não há esperança no cinema atual. Dizem por aí que todos lutam contra o machismo, mas na verdade nada mudou. […] Tenho me engajado nas causas do feminismo e [contra a] violência sexual. Através de um tipo de contágio, percebemos que esses sistemas estão interligados.
Adèle Haenel não participou de mais nenhum longa-metragem desde 2019, quando, além de Retrato, também apareceu em Deerskin: A Jaqueta de Couro de Cervo e Heróis Nunca Morrem. Em 2021, ela narrou o documentário político Retour à Reims, sobre a classe trabalhadora na França.