Pluto, Sleep With Me e a Complexidade da Representação PCD nos GLs

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As produções asiáticas miram expulsar o capacitismo do romance entre mulheres com histórias sensíveis

por Cecília Lopes

Nem todas as mulheres sáficas são iguais, e nem todas as mulheres sáficas são apenas mulheres sáficas. Elas são também mulheres negras, indígenas, trans e portadoras de deficiência. Um só molde de representação não engloba todas as experiências que existem dentro da nossa comunidade, e por isso é preciso pedir que a indústria GLs continue seu trabalho em prol da representação sáfica incluindo personagens cuja identidade é marcada por uma interseção de vivências. 

Uma das frentes em que a indústria dos GLs asiática tem avançado em termos de diversidade, é a representação de personagens que são Pessoas Com Deficiência (PCD). Atualmente, a indústria já nos forneceu duas produções com protagonistas portadores de deficiência, da Tailândia, o GL “Pluto: The Series”, da GMMTV, e das Filipinas, a série “Sleep With Me”.

Em Pluto, Ai-oon é forçada a terminar o relacionamento da irmã em seu lugar / Foto: Reprodução: “Pluto”/GMMTV

Pluto, adaptação do romance de Chao Planoy, autora de “Gap”, retrata o romance turbulento entre Ai-oon e May, que é uma mulher cega. Na série, o romance entre as duas começa com o pé esquerdo quando a gêmea de Ai-oon pede que a irmã termine com sua namorada, May, se passando por ela. Tudo se complica quando Ai não é capaz de terminar o relacionamento e começa a namorar May, fingindo ser a própria irmã. 

A deficiência visual de May é uma parte importante da personagem, mas não a define inteiramente. May é uma herdeira de grandes posses, advogada e tem um jeito meigo de ser mandona. Ela ficou cega já adulta, e isso fez com que ela se isolasse dentro de casa, único lugar onde ela tem controle completo dos seus arredores. A agorafobia de May é explorada durante a série, e Ai-oon ajuda ela a se sentir mais confortável a sair pelas ruas.

Ai-oon consola May depois que ela sofre um acidente na rua / Foto: Reprodução: “Pluto”/GMMTV

A questão da troca de gêmeas que faz parte da trama, facilmente poderia ter tirado a autonomia da May como personagem. A série poderia ter usado a cegueira de May como uma desculpa tosca para tornar a farsa mais verossímil, se baseando na ideia de que, por ser cega, May não poderia perceber as diferenças entre as duas gêmeas. Mas, felizmente, os roteiristas fizeram questão de não deixar esta questão implícita, e incluíram uma cena em que May insiste em tocar no rosto de Ai-oon, a reconhecendo pelo toque. A cena tem papel importante em demonstrar a forma que May percebe o mundo, e não a caracterizá-la como uma simples vítima.

A relação entre o capacitismo e a homofobia também é abordada pela série. Os pais ricos e conservadores de May enxergam sua deficiência da mesma forma que enxergam sua sexualidade : como uma falha a ser corrigida. Dentro daquele ambiente tradicionalista, tanto a deficiência quanto a homossexualidade representam desvios de um ideal de femininidade imposto a força. Diante desta situação, May revela-se como uma personagem incrivelmente forte, que se dispõe a lutar tanto pela sua identidade como mulher sáfica, quanto como mulher PCD.

May reconhece Ai-oon pelo toque, ainda sob a impressão que ela é sua namorada / Foto: Reprodução: “Pluto”/GMMTV

É bem claro que a intenção de Pluto era ser uma fonte de representação positiva para a comunidade cega. Cenas como a em que May cozinha para Ai-oon, cortando vegetais mesmo sem ver, viralizaram exatamente por mostrar pessoas cegas realizando tarefas comuns de forma natural. A série também conta com vários momentos educativos, como um momento em que May apresenta o conceito como o design universal, uma abordagem de design que visa garantir a igualdade de acesso à espaços públicos de todos os tipos.

Este tipo de representação realmente tem um poder transformador enorme, e a série merece crédito e aclamação pela forma cuidadosa que retratou o tema dos direitos PCD. Porém, a produção acaba escorregando nos episódios finais, ao revelar que a cegueira de May era apenas uma condição temporária. A virada é problemática pois dá a entender que, para Ai-oon e May terem seu almejado final feliz, May precisa ser curada da sua deficiência visual.

A série se contradiz mais, quando, no episódio 8, ao ser questionada sobre quando vai contar para Ai-oon sobre sua recuperação, May fala que só vai revelar sua melhora quando puder “Olhar nos olhos dela, com meus próprios olhos e enxergar claramente que ele me ama”. Esta fala de May acaba invalidando as próprias experiências da personagem e de toda comunidade cega, passando a ideia de que é necessário literalmente enxergar alguém para realmente saber que o ama.

May e seus pais têm um confronto depois que eles descobrem seu relacionamento com Ai-oon / Foto: Reprodução: “Pluto”/GMMTV

Fazer com que May, uma personagem PCD, temporariamente “exagere” a gravidade da sua cegueira também é uma escolha questionável. “Fingindo Deficiência” é um clichê tão presente na mídia que até possuí sua própria página no site TV Tropes, e de acordo com a educadora PCD, Cindy Baldwin, a representação de “falsos deficientes” na mídia faz com que pessoas não-PCD muitas suspeitem da legitimidade da condição de PCDs na vida real, levando à situações de constrangimento e preconceito.

Este comportamento acabou se recriando dentro do próprio fandom de “Pluto”, que com a melhora repentina da visão de May, começou a fazer piadas, teorias e comentários um tanto insensíveis sobre seu status como pessoa com deficiência. Mesmo se tratando de uma personagem ficcional, é importante reavaliar comportamento e examinar o capacitismo por trás dessa decisão narrativa de “livrar” personagens PCD de suas condições. Pluto é uma série complexa, com muitos nuances dramáticos, e uma equipe incrível por trás, que trabalhou dia e noite para entregar um trabalho respeitoso e sensível.

Seu sucesso foi um marco imensurável, tanto para comunidade sáfica como para a comunidade cega, mas como a primeira grande produção GL com uma protagonista PCD, é compreensível que o roteiro ainda reflita algumas tendências capacitistas que devem ser corrigidas no futuro.

Os momentos entre as protagonistas são sempre regados de cuidado e significado / Foto: Reprodução: “Pluto”/GMMTV

A única outra produção GL do mercado asiático com uma protagonista PCD é “Sleep With Me”, das Filipinas, escrito e dirigido por Samantha Lee. Lançado em 2022, “Sleep With Me” conta a história do romance entre Harry, uma apresentadora de programa de rádio noturno, que é cadeirante, e Luna, uma mulher com um distúrbio que a faz dormir apenas durante o dia. Com o desenrolar da trama, “Sleep With Me” traz reflexões importantes sobre a diferença entre pessoas com deficiências “invisíveis” e deficiências visíveis.

Harry é sempre definida pela sua cadeira de rodas, e tem que lidar com comentários constantes sobre como ela é “uma grande inspiração” simplesmente por existir. Poucas pessoas conseguem enxergar a pessoa alegre, inteligente e generosa que ela é, preferindo em vez, sempre tratá-la como uma tragédia ambulante. Por outro lado, a Síndrome de Fase de Sono Atrasado de Luna não é levada a sério por ninguém, e seus sintomas são vistos como preguiça, mesmo quando ela sofre consequências graves por conta da doença. 

Harry vê Luna pela primeira vez / Foto: Reprodução: “Sleep With Me”/iWant TFC

Enquanto Harry se sente incompreendida por ter uma deficiência visível, Luna se sente isolada por conta da sua deficiência invisível. Juntas, pouco a pouco, elas remediam a solidão uma da outra, mas ao longo do seu relacionamento, o horário invertido de Luna se torna um ponto de estresse. Ela sente que sua condição não a permite ser uma boa namorada e “cuidar” de Harry como ela deveria, porém essa fala apenas piora a situação, fazendo Harry se sentir diminuída e infantilizada.

Na trama consegue superar esta percepção capacitista e as duas personagens conseguem se reencontrar depois de resolverem seus problemas emocionais / Foto: Reprodução: Instagram

Infelizmente o conflito entre as duas é um sintoma do capacitismo internalizado, uma noção que apenas pessoas completamente saudáveis, de mente e corpo, merecem viver um relacionamento feliz. Podemos observar que é esta mesma ideia que está por trás da cura surpresa de May em “Pluto”, pois, mesmo que inconscientemente, a deficiência é retratada como um obstáculo narrativo que impede a felicidade dos personagens, e por isso precisa ser “superada”.

Já em “Sleep With Me”, a trama consegue superar esta percepção capacitista e as duas personagens conseguem se reencontrar depois de resolverem seus problemas emocionais, individualmente, amadurecendo o suficiente para recomeçar seu relacionamento com mais sabedoria.

Atriz Marissa Bode de “Wicked” com sua namorada, Wren Brooks, jornalista e ativista de direitos PCD / Foto: Reprodução: Instagram

Ao analisar tanto “Sleep with Me” quanto “Pluto”, podemos observar que houve um esforço da indústria de GL em prol de representar mulheres PCD de forma realista, e respeitosa, porém ainda faz falta a inclusão de atrizes PCD.

De acordo com um estudo da Fundação Ruderman, 95% dos personagens portadores de deficiência são representados por atores não-deficientes, isso é um problema enorme para os atores PCD, que já sofrem preconceito dentro da indústria e têm dificuldade de encontrar papéis. Pessoas PCD têm o direito de representar a si mesmos, e mulheres sáficas PCD merecem ser as estrelas de suas próprias histórias. Portanto, esperamos que no próximo GL que fale sobre deficiência a produção abra mais espaço para atores, roteiristas e produtores PCD.

Foto em destaque: Montagem: Reprodução: IMDb

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