Para entender o impacto dessa produção idealizada por Eve Cosendey, é impossível ignorar o histórico do audiovisual LGBTQIAPN+ no Brasil e, em especial, o cenário sáfico, que tantas vezes ficou à margem ou foi tratado com descaso
por Rayanne Tovar
Durante muito tempo, mulheres que amam mulheres buscaram espelhos em conteúdos estrangeiros, colecionando personagens que falavam de realidades distantes da nossa. Mas foi aqui mesmo, na TV aberta, que aconteceu um dos momentos mais marcantes para a representatividade sáfica: Marina e Marcela, vividas por Giselle Tigre e Luciana Vendramini na novela “Amor e Revolução”, exibida pelo SBT em 2011.
A novela, escrita por Tiago Santiago, trazia à tona histórias de resistência durante a ditadura militar e, em meio a tantas camadas políticas, deu espaço para o primeiro beijo lésbico exibido em uma telenovela brasileira. Marina, uma jornalista determinada, e Marcela, advogada engajada na luta contra os abusos do regime, se apaixonaram diante de milhões de espectadores. Foi um marco. O beijo de Marina e Marcela fez dobrar a audiência da novela na noite em que foi ao ar, mostrando que, mesmo com polêmicas, existia público sedento por se ver na tela. Ainda assim, o segundo beijo entre elas chegou a ser gravado, mas foi censurado, o que só aumentou a força do casal.
É impossível falar de “Não Costumo Me Apaixonar Por Telefone” sem lembrar desse peso histórico. O que Eve Cosendey faz aqui é transformar essa história e dar a ela um novo espaço para florescer. Na nova trama, Marina e Marcela renascem com os mesmos nomes, quase como se fosse uma realidade paralela onde aquelas mulheres, apesar de todos os medos e preconceitos, conseguem se encontrar de outro jeito.

A história se passa nos anos 90, quando os caminhos de duas desconhecidas se cruzam por acaso. Marcela, tentando falar com sua ex-namorada, liga para um número antigo, que agora pertence a Marina, a nova moradora do apartamento. A ligação errada vira hábito; as vozes estranhas tornam-se íntimas. Aos poucos, confissões substituem o silêncio, e conversas do cotidiano se entrelaçam com algo mais profundo. O que começou como uma tentativa de reencontrar um amor perdido logo se transforma em outro tipo de conexão. A ex vira lembrança. E, no espaço deixado por ela, algo novo começa a nascer entre Marcela e Marina: afeto, desejo, curiosidade.
A fotografia é um espetáculo à parte. A câmera nos coloca dentro da ligação, como se fôssemos testemunhas invasivas de algo íntimo demais. Poucos detalhes das personagens são revelados de início, conhecemos Marina e Marcela pelo som, pela respiração. Aos poucos, fragmentos de quem são vão surgindo, junto com as camadas de uma tensão que cresce até se materializar. E quando enfim se encontram, tudo se encaixa: o beijo é mais do que cena. É memória, é homenagem, é reparação para uma geração que, lá atrás, sonhou com esse reencontro.

A série, que soma cerca de 40 minutos divididos em seis episódios, é quase um média-metragem feito de fã para fãs. E a boa notícia é que essa história não termina aqui: a produção já confirmou uma segunda temporada, que promete aprofundar ainda mais essa
relação e trazer a tão comentada Ana à cena, vivida por uma atriz que promete dar ainda mais força para tudo isso. Esse é um trabalho de quem entendeu que Marina e Marcela não foram só personagens, mas um marco na vida de tantas mulheres que, por anos, precisaram se contentar com histórias interrompidas. O resultado é uma obra intimista, bonita nos detalhes, honesta na nostalgia e forte na mensagem: mostrar que, mesmo quando tentam silenciar, nossos afetos sempre encontram outras formas de existir e de se reinventar.
Em “Não Costumo Me Apaixonar Por Telefone”, quem assiste também se apaixona – por elas, por nós, por tudo que ainda podemos ser na tela.
Foto em destaque: Divulgação: “Não Costumo Me Apaixonar Por Telefone”