Crítica: “A Batalha da Rua Maria Antônia” e a briga contra o fascismo

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Em tempos de tentativa de golpe militar, relembrar a história para que não se repita é essencial

Por Laura Magro

“A Batalha da Rua Maria Antônia” é um longa-metragem baseado no confronto entre os estudantes da Faculdade de Filosofia da USP e da Universidade Presbiteriana Mackenzie que aconteceu na cidade de São Paulo em 1968, durante o período da ditadura militar. O filme acompanha jovens do movimento estudantil realizando um plebiscito na USP, enquanto enfrentam os ataques dos fascistas do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) vindos do outro lado da rua.

Logo no início do filme, algumas escolhas estéticas me chamaram a atenção: a proporção da tela e a imagem em preto e branco e com ruído. Esses elementos me remeteram imediatamente à época em que a história se passa – e, em um debate com a diretora Vera Egito, descobri que o longa foi filmado com uma câmera 16mm. Para mim, essa foi uma decisão genial. O uso de recursos disponíveis na época trouxe um ar de autenticidade ao filme, como se ele tivesse sido registrado por um estudante que vivenciou aqueles eventos.

Outro aspecto que contribui muito para essa imersão do espectador – como se estivéssemos na faculdade e assistindo tudo aquilo de perto – é a estrutura narrativa do filme, dividida em 21 partes correspondentes a 21 planos-sequências. O que pode ser uma escolha muito ousada da direção, ao meu ver funcionou muito bem. Criou uma sensação de que a câmera representa um ponto de vista do próprio espectador. O resultado é intimista e envolvente.

Começamos a acompanhar a história a partir da perspectiva de Lilian, estudante de filosofia que chega à faculdade para suas aulas. Desde o início, percebemos sua tensão: ela está cabisbaixa, observando tudo ao seu redor. Em uma conversa com um amigo do ensino médio, fica evidente que ela não tem muitos amigos em sua turma. O motivo logo se revela: grande parte dos estudantes está envolvida no movimento estudantil contra a ditadura, enquanto Lilian opta por se manter à margem, tentando levar uma vida “normal”. Mas, naquele contexto, isso era impossível. A violência e a repressão eram onipresentes, ninguém – a não ser as pessoas a favor do regime militar – estava a salvo.

Entretanto, algo a faz reconsiderar: sua melhor amiga, Angela, uma ativista engajada. Mesmo que não quisesse se envolver, a garota decide acompanhar de perto as movimentações dentro da faculdade para garantir que sua amiga não estivesse correndo riscos. Desde o início, os olhares de Lilian para Angela sugerem que há algo a mais do que amizade – pelo menos da parte de Lilian. Isso explica sua necessidade de proteger Angela e estar presente no movimento. No entanto, Angela não corresponde a esses sentimentos; para ela, Lilian é apenas uma irmã.

Foto: Reprodução: “A Batalha da Rua Maria Antônia” | Globo Filmes

Lilian acaba se envolvendo romanticamente com outra militante, protagonizando uma cena de sexo intensa e esteticamente marcante. A diretora opta por não mostrar o ato explicitamente, mas sim explorar a sensação e o desejo. A sequência é composta por planos muito bonitos do reflexo delas transando, brincando com a distorção da imagem, de forma a parecer que elas estão entrando uma na outra. E isso representa muito o sentimento de uma relação entre mulheres. É tudo tão intenso, o desejo é tanto que apenas o toque não é suficiente. É como se precisássemos de mais. Como se precisássemos entrar uma na outra para ser suficiente – e, sendo sincera, acho que nem assim seria, mulheres se amando é intenso demais.

Alguns podem questionar a inclusão de romance em um filme com uma temática tão densa e pesada, mas, ao meu ver, isso faz todo o sentido. Estamos falando de jovens universitários, com sentimentos à flor da pele. O amor e o sexo faziam parte daquela vivência, e representá-los humaniza a história. Os personagens podem ser fictícios, mas suas experiências foram reais. Os sentimentos foram reais. A luta foi real.

O filme mantém a tensão na medida certa. A cada cena, sentimos que algo muito ruim está prestes a acontecer. Acompanhamos as escolhas dos estudantes – não como certas ou erradas, mas como decisões que os levaram ao inevitável. Uma guerra estava instaurada entre os alunos das duas instituições. Os estudantes da Mackenzie eram fascistas que faziam parte do CCC. A polícia estava planejando entrar no prédio. Mesmo diante de tudo isso, eles optaram por resistir e proteger o prédio que simbolizava sua luta.

Uma das cenas mais emblemáticas é quando todos estão sentados espalhados pelo prédio, apenas esperando. Esperando a contagem dos votos da urna. Esperando o que quer que viria pela frente. Uma das ativistas toca “Roda Viva”, de Chico Buarque, no violão, enquanto a câmera faz um plano sequência andando em círculos pelo corredor. A cena, apesar de simples, transmite uma mensagem poderosa sem precisar de diálogos – apenas de uma bela fotografia e uma canção de significado forte.

Além de sua narrativa envolvente, “A Batalha da Rua Maria Antônia”  se destaca pela direção de fotografia ousada e pelo trabalho cuidadoso da direção de arte, que recria com precisão a época retratada – desde os figurinos até a tipografia dos cartazes. Vera Egito conduz o filme com delicadeza, tratando um tema pesado com respeito e beleza. Este não é um filme sobre luto; é um filme sobre resistência.

A cena final sintetiza essa ideia. Quando a professora sai do prédio para tentar negociar com os militares, há um instante de esperança – por mais que saibamos que ela será ignorada. Esse breve momento de expectativa nos aproxima da realidade daqueles estudantes: eles sabiam que estavam em desvantagem, mas ainda assim tentavam resistir.

É neste momento que o filme explode. Os militares não aceitam o pedido da professora e na verdade nem se dão ao trabalho de ouví-la. Invadem o prédio da faculdade e começam a prender – com uma abordagem violenta – os estudantes militantes que encontram pela frente. Neste momento uma trilha sonora instrumental começa a tocar. É quase como se entrássemos num momento meio surrealista, contemplativo, como se o que estivesse acontecendo não fosse real. Mas foi real. Ao meu ver foi uma escolha muito acertiva. Não ouvimos os gritos, apenas os acordes melancólicos.

Angela, que lutara tanto durante todo o filme, foi pega pelos policiais. Foi espancada e enforcada, até ser jogada em uma viatura junto de outros estudantes que haviam sido presos. Mas, em vez de seguir seu destino, o filme nos leva para as ruas, onde estudantes protestam contra a ditadura. Essa escolha narrativa nos dá um vislumbre da experiência daqueles tempos: as pessoas eram presas arbitrariamente e desapareciam, enquanto seus colegas não sabiam se um dia as veriam novamente.

O filme encerra com Lilian na manifestação, gritando “abaixo a ditadura”. Sua trajetória reflete um amadurecimento marcante: de alguém que queria apenas seguir a vida “normalmente” para alguém que compreendeu a urgência da luta. Entretanto, ela é a única personagem que parece ter um desenvolvimento notável.

Foto: Reprodução: “A Batalha da Rua Maria Antônia” | Globo Filmes

Apesar dos muitos acertos, dois aspectos enfraquecem o filme: o roteiro e algumas atuações. Os diálogos, em certos momentos, são superficiais e pouco naturais. A atuação, por sua vez, oscila entre momentos convincentes e outros excessivamente ensaiados.

Outro ponto que poderia ter sido melhor desenvolvido é a eleição estudantil que impulsiona grande parte da trama. Embora fique claro que a urna tem um significado crucial para os estudantes, o filme não explica exatamente o que está em jogo. Durante o debate com a diretora, ela argumentou que não queria “mastigar” as informações para o espectador, pois acreditava que todos deveriam conhecer o contexto da ditadura militar – e, se não soubessem, poderiam pesquisar. Uma participante do debate levantou um ponto interessante: essa escolha coloca o espectador no papel de um estudante recém-chegado à faculdade, perdido no meio dos acontecimentos. Por essa perspectiva, a falta de explicação se torna compreensiva.

Entre erros e acertos, “A Batalha da Rua Maria Antônia” é um filme que me surpreendeu positivamente. Seus 21 planos-sequências poderiam facilmente torná-lo monótono, mas, pelo contrário, ele me prendeu do começo ao fim. Me vi envolvida na história, aflita a cada confronto entre os estudantes da USP e os fascistas da Mackenzie.

Não se pode chamar de um filme sáfico, pois a temática está longe de ser sobre isso. Entretanto, ao meu ver, as personagens são muito bem representadas, em toda sua delicadeza e resistência. Em toda sua intensidade. E sem tirar o foco do principal: mostrar a realidade de um momento da nossa história que não pode jamais ser esquecido, para que nunca mais se repita. O longa mostra o quanto era tudo confabulado pelos militares fascistas, o quanto eles agiam nas surdinas para caçar a oposição. Mostra o quão violentos os militares já eram, mesmo antes da implementação do AI-5 – que foi motivada por acontecimentos como o da Batalha da Maria Antônia.

Independente de as pessoas considerarem bons ou não, filmes como “A Batalha da Rua Maria Antônia” – e como “Ainda Estou Aqui” – são de extrema importância para manter viva a memória de tantas pessoas que foram violentadas, torturadas, estupradas e mortas pelo regime militar brasileiro. Diante do cenário atual, em que tivemos uma tentativa de golpe e com o crescimento da extrema direita, relembrar esse tempo sombrio é mais importante do que nunca.

Foto em destaque: Reprodução: “A Batalha da Rua Maria Antônia” | Globo Filmes

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