Ana Hikari fez história ao ser a primeira atriz de ascendência asiática a brilhar como protagonista numa novela da TV Globo, “Malhação – Viva a Diferença” em 2017. A trama ganhou destaque e recebeu o prêmio de melhor série no Emmy Internacional Kids de 2018, a história das cinco amigos continuou a ser retratada no spin-off, “As Fives”, que possui duas temporadas lançadas no Globoplay e uma terceira, gravada, mas sem data prevista de lançamento. Agora, após 6 anos na Globo, a atriz assinou contrato com o Star+ e está confirmada na série “Amor da Minha Vida”.
Para além da tela, Ana Hikari se estabeleceu como uma influente defensora da representatividade, especialmente para a comunidade asiática no Brasil. Através de sua presença ativa nas redes sociais, Ana Hikari utiliza sua plataforma para abordar uma série de questões importantes, incluindo representação, política, acessibilidade e muitos outros temas relevantes. Por isso, convidamos a atriz para um bate-papo sobre vida pessoal, carreira e representatividade.
Como foi o processo para entender a sua sexualidade? Teve alguém na mídia que se tornou referência para você durante esse processo?
Eu diria que foi um processo relativamente longo, porque eu não entendi a minha sexualidade tão cedo quanto eu gostaria. Eu já sabia como me sentia desde mais nova, mas só fui me libertar para viver as experiências que eu queria depois que entrei na faculdade e comecei a ler e conversar com outras pessoas sobre uma diversidade maior em relação à sexualidade. Não me lembro de pensar em alguém na mídia que fosse uma referência nesse sentido pra mim, porque, geralmente, a bissexualidade não era tão abordada. As referências que eu tinha eram mais de mulheres que amavam exclusivamente mulheres e isso não me contemplava totalmente.
A bissexualidade em muitos produtos audiovisuais é retratada através de elementos narrativos que percorrem pela confusão, promiscuidade e/ou ambiguidade. Para você, como isso afeta os jovens que estão entendendo a sua sexualidade?
Essas representações da bissexualidade no audiovisual, em geral, são muito ruins para quem está no processo de compreensão da própria sexualidade, porque a bissexualidade, de fato, não é sobre confusão mental. Mostrar de maneira mais objetiva, com mais naturalidade e compreensão de que é algo normal seria a melhor solução, mas nem sempre é essa a alternativa escolhida pela indústria audiovisual para falar desse tema. Eu queria que a bissexualidade fosse mostrada de maneira tão gostosa e natural quanto a heteronormatividade nas telas.
Você começou a atuar aos 12 anos e, nos anos seguintes, seguiu nos palcos e estudou artes cênicas. Você já tinha certeza desde a infância que queria se tornar atriz? Ou foi uma brincadeira de criança que se transformou em uma paixão ao longo do tempo?
Ultimamente, eu tenho conversado com pessoas que me conhecem desde pequena e muitas delas me contam que eu falava sobre ser atriz desde sempre. Tenho achado essas conversas curiosas e surpreendentes, porque acho que eu não tinha tanta noção de que isso de fato já era algo muito latente dentro de mim, a ponto de muitas pessoas terem escutado isso da minha boca desde pequenininha. Sempre soube da minha paixão pela arte e, quando fui escolher o que cursar na universidade, era como se eu não tivesse outra escolha que não fosse Artes Cênicas. Mas sim, sempre foi como uma paixão tão grande dentro de mim, que tinha que ir pra fora e se concretizar de alguma maneira.
Você mencionou em entrevistas anteriores que ser uma pessoa de ascendência asiática na indústria do entretenimento teve seus desafios. Como você os superou e o que você acredita que ainda precisa ser feito para promover a inclusão de mais artistas asiáticos na mídia brasileira?
Eu não tenho certeza se superei todos esses desafios do audiovisual em relação à raça, porque até hoje ainda recebo pedidos de testes estigmatizados e até com uma abordagem problemática em relação a questões raciais. Infelizmente, esse desafio não é uma exclusividade minha, todos os artistas amarelos passam por ele. E enquanto outros artistas não estiverem livres desse desafio da estigmatização e das poucas oportunidades de testes e de trabalho, eu não sinto que superei 100% esse desafio. Acredito que um aumento nas discussões sobre diversidade nas produções ajude nisso, ou seja, que cada vez mais pontos de vistas não brancos sejam abordados e contados nas histórias que vamos consumir no audiovisual. Só assim vamos ver atores não brancos em papéis não estigmatizados e fora de personagens repletos de preconceitos e discriminação.
Qual é a importância de ter espaços seguros e de apoio para artistas da comunidade LGBTQIA+ na indústria? Você encontrou comunidades ou grupos de apoio que foram essenciais para você durante sua jornada?
É sempre importante saber que temos alguém para compartilhar nossas angústias e dúvidas em relação à nossa sexualidade. A sensação de pertencimento é importante para qualquer ser humano e saber que passamos por dificuldades, mas temos um ponto de acolhimento entre nós, é essencial. Felizmente, já troquei muito com outros artistas LGBTQIA+ sobre nosso lugar nessa comunidade e na indústria cultural e sei o quanto essas articulações nos ajudam a nos fortalecer e nos posicionar, por exemplo, diante de casos de injustiça ou discriminação. Eu sou muito a favor da mobilização coletiva, sempre! E acredito que esses grupos de discussão e apoio articulam de maneira eficiente uma mudança no cenário mundial.
Além de atuar, você também é uma voz ativa nas redes sociais e na mídia sobre questões sociais e de representatividade. Como você vê o papel das redes sociais nesse contexto?
Minhas redes sociais cresceram graças ao meu trabalho como atriz. Eu poderia apenas usar essa plataforma como uma vitrine para minha aparência ou algo assim, mas quando vi o potencial de comunicação que essas plataformas têm, entendi que poderia compartilhar muito do que eu estudo com o público que me acompanha e confia na minha opinião. Por conta disso, comecei a falar, nas redes sociais, sobre temas que achava importantes, compartilhando leituras, reflexões e questionamentos. Acho fundamental saber que com tanta influência em mãos eu posso trazer um pouquinho de mudança para o mundo ser mais justo para todas as pessoas, seja na questão de gênero, raça, classe, orientação sexual etc.
Você é considerada a primeira protagonista asiática em uma novela da Globo, seja nas suas entrevistas ou nas redes sociais, você debate sobre essa temática, trazendo à tona a importância da diversidade e inclusão no cenário artístico. Mas como foi o feedback desse posicionamento, principalmente no campo profissional?
As pessoas têm se aberto mais às discussões sobre raça dentro do Brasil. Esse já é um tema trazido pelo movimento negro brasileiro há anos, mas sinto que, ultimamente, a indústria artística têm se sensibilizado mais com os debates sobre raça dentro das representações audiovisuais. Já passou do tempo de acreditarmos no mito da democracia racial que nos disseram que construiu o Brasil, porque esse mito só faz a gente evitar um diálogo honesto sobre as diferentes maneiras que pessoas não brancas são tratadas no nosso país. E essa diferença está presente no cenário artístico, mas precisa urgentemente mudar. Por sorte e muita luta, está em discussão recentemente e com mudanças muito bacanas. Não é à toa, por exemplo, o sucesso de uma novela como “Vai na Fé”, com recorde de audiência e um elenco majoritariamente negro. Fato é: o sucesso de roteiros com maior diversidade está muito em destaque e vai mexer com as estruturas do cenário artístico.
Atualmente, você integra o elenco da série “Amor da Minha Vida” da Star+, você pode nos dar algum spoiler da sua personagem? Ou contar como você entrou para o projeto?
Ainda não posso dar spoiler sobre a personagem, mas posso compartilhar que já conhecia o trabalho do diretor Matheus Souza e a gente quase trabalhou juntos em outro filme, mas, na época, eu ainda tinha contrato de exclusividade com a Globo e não fui liberada. Desde então, sempre tive vontade de trabalhar com ele, porque acho seus roteiros e personagens construídas muito interessantes. Fiquei feliz de entrar pra esse elenco, porque, felizmente, essa personagem, além de ser interessante, está longe de questões estereotipadas em relação à raça. E estou ao lado de um elenco muito delicioso de trabalhar!
Como você vê o futuro da representatividade na mídia brasileira e como espera que a indústria continue evoluindo em relação à inclusão e diversidade nos próximos anos?
A representatividade é uma pauta urgente na mídia brasileira e tenho certeza que essa discussão vai entrar mais e mais nas salas de produção, para que a representatividade aconteça desde o início do processo de uma obra audiovisual. O melhor caminho para isso é entregar não só um produto com representatividade, mas também mudar o processo de produção desses conteúdos, com mais diversidade dentro das salas de roteiro, dentro dos cargos de comando dos projetos etc.
Se você pudesse dar um conselho para si mesma quando estava lidando com o medo em relação à sua sexualidade, qual seria?
O período da escola foi quando eu mais lidei com esse “medo”. E eu sei que esse momento da vida é muito difícil mesmo, porque as pessoas ainda estão em formação ao mesmo tempo que já estão cheias de preconceitos e uma vontade gigante de julgar o outro. Então, eu diria pra eu ficar tranquila, que tudo o que eu escutava de ruim sobre minha sexualidade era muito mais problema dos outros com eles mesmos. Diria que não tem absolutamente nada de errado em ser quem eu sou, que eu não estava fazendo nada de errado, nem mal a ninguém. E que eu ainda ia ser muito feliz e sem preocupações em relação a isso. Hoje em dia, eu tenho muita liberdade e felicidade de poder ser quem eu quero ser, me apaixonando e me envolvendo com quem eu quero, sem precisar lidar com o julgamento dos outros. Mas acho que a minha dica principal é: esse período de medo é só uma fase dos outros quererem julgar mais.