Preta Gil: A Voz que Ecoou Liberdade e Marcou Gerações ao Redor do Brasil

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A cantora e musicista conquistou uma legião de fãs e admiradores por todo o país e deixa uma saudade latente no peito

por Rayanne Tovar

Em uma sociedade que por décadas silenciou vozes dissidentes, Preta Gil ergueu-se com resistência, coragem e autenticidade. Sua partida, após uma luta incansável contra um câncer no intestino diagnosticado em 2022, deixa um vazio imenso, mas também um legado inabalável para a comunidade LGBT+ brasileira. Mais do que uma artista multifacetada, Preta transformou sua carreira em palco para a diversidade e sua existência em um manifesto de liberdade.

Filha de Gilberto Gil, Preta nasceu em 8 de agosto de 1974, em uma época em que mal se discutia bissexualidade ou identidade LGBT+ na grande mídia. Desde cedo, construiu sua trajetória desafiando padrões impostos por uma sociedade profundamente machista, racista e LGBTfóbica. “Desde criança, eu me sentia atraída por pessoas, independentemente do gênero”, revelou em entrevista ao Terra em 2022, expondo uma verdade que muitos ainda escondem.

Preta Gil sempre foi parte e deu voz à camunidade LGBTQIAPN+ / Foto: Reprodução: Instagram

Ao longo das décadas de 2000 e 2010, Preta consolidou sua carreira artística misturando música, televisão, carnaval e projetos autorais. Mulher negra, gorda, candomblecista e bissexual, como ela mesma se definia, transformou cada aspecto de sua identidade em fonte de orgulho e luta, tornando-se uma das figuras mais potentes da música e da cultura popular brasileira.

Voz Ativa pela Comunidade LGBT+

A trajetória de Preta Gil também foi marcada por coragem para ocupar espaços em defesa de quem historicamente foi silenciado. Sua importância para a comunidade LGBT+ ultrapassou a representatividade simbólica: Preta transformou sua própria vida em ato político. Em um país onde mulheres que amam mulheres enfrentam dupla invisibilidade, pela misoginia e pela lesbofobia, ela ofereceu visibilidade real ao se declarar com orgulho uma mulher bissexual, quando quase ninguém ousava fazer isso publicamente.

Durante um show, a cantora fez uma referência à bandeira LGBTQIAPN+ / Foto: Reprodução: Instagram

Ao admitir suas paixões e relacionamentos com mulheres, como quando revelou ter sentido uma “paixão platônica” pela cantora Ana Carolina, Preta normalizou vivências que milhões de brasileiras carregavam em silêncio. Mas sua luta foi muito além dos palcos: em 2013, discursou no Senado durante o Seminário Nacional de Políticas para a População LGBT e foi até o Congresso Nacional defender o direito ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.

Naquele momento, o tema era alvo de forte resistência política. Sua fala histórica reafirmou o direito à igualdade e ajudou a pressionar o Supremo Tribunal Federal, que já havia equiparado uniões estáveis homoafetivas ao casamento civil em 2011, mas que ainda precisava de regulamentação legislativa.

Nos palcos das Paradas do Orgulho LGBT, Preta era sinônimo de festa, mas também de resistência. Em 2018, reuniu mais de 50 mil pessoas na Parada do Orgulho do Acre, levando representatividade a uma das regiões mais violentas para a população LGBTQIA+. “Estamos conquistando espaço e voz”, disse à revista Caras, resumindo o que sua presença significava para tantas pessoas.

Em 2009, Preta Gil esteve presente durante a Parada LGBTQIAPN+ em Rio Branco, no Acre / Foto: Rose Faria/Arquivo Agência de Notícias do Acre

Para mulheres bissexuais, historicamente apagadas até mesmo dentro do próprio movimento, Preta foi uma inspiração viva de que é possível existir, resistir e ocupar todos os espaços, seja nos shows, no Congresso ou nos blocos de carnaval.

Legado

No carnaval, Preta deixou uma marca definitiva. Foi coroada Rainha de Bateria da Mangueira em 2013 e criou o Bloco da Preta, que em 2020 reuniu mais de 500 mil foliões nas ruas do Rio de Janeiro, provando que o carnaval é e deve continuar sendo um espaço de diversidade. Após sua morte, a Prefeitura do Rio anunciou a criação de um circuito carnavalesco em sua homenagem, eternizando sua importância na maior festa popular do país.

Mesmo em seus últimos dias, Preta permaneceu pública, compartilhando sem medo sua batalha contra o câncer. Sua franqueza encorajou outras mulheres a cuidarem da própria saúde, mesmo em meio ao preconceito que ainda envolve o câncer de intestino e tabus sobre corpos que adoecem.

Com uma influência para além do solo brasileira, Preta Gil será lembrada com amor e carinho por aqueles que a acompanhavam / Foto: Reprodução: GShow

A repercussão internacional de sua morte comprova que sua influência rompeu fronteiras. Cada aparição na TV, cada show lotado, cada postagem sobre direitos humanos era um lembrete de que visibilidade também é resistência. Foi isso que ela nos deixou: a certeza de que é possível ser múltipla, complexa e, sobretudo, livre.

O Brasil perdeu uma voz única, mas ganhou um legado eterno. Preta Gil provou que o amor não tem fronteiras de gênero, que a arte pode ser instrumento de transformação social e que ser autêntica é o ato mais revolucionário que existe. Nas próximas Paradas do Orgulho, nos próximos carnavais, suas músicas ainda soarão. Na coragem de mulheres que se reconhecem bissexuais ou lésbicas, sua força continuará viva.

Este é seu maior legado: ter provado que ser quem somos é uma canção de liberdade que nunca se cala.

Obrigada, Preta. Axé.

Foto em destaque: Reprodução: Jornal Tribuna

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