Nos últimos anos, diferentes meios de comunicação vem retratando a importância de se ter histórias diversas e plurais que deem protagonismo para diferentes indivíduos, destacando o impacto positivo em grupos minoritários como a população de pessoas pretas e da comunidade LGBTQIA+. Dentro desse debate, surge vozes que veem ganhando espaço nessa conversa, como da atriz Camilla Damião.
A interprete de Menah, da novela “Terra e Paixão”, conversou com o Lesbocine sobre sua jornada de autodescoberta, abordando vida pessoal e discutindo os desafios relacionados à sua carreira, destacando a importância da representatividade na mídia. Além disso, ressalta como a internet pode normalizar questões de sexualidade e enfatiza a responsabilidade de ser um modelo para sua comunidade.
Como foi o processo de autodescoberta em relação à sua sexualidade? Quando você percebeu ou compreendeu sua orientação sexual?
Com 17 anos, eu tive meu primeiro contato com uma escola de artes e comecei a estudar dança, teatro e artes visuais. Foi o primeiro passo para me descobrir porque lá eu cheguei e vi que tinham pessoas como eu, pessoas que pensavam como eu e pessoas diferentes. Basicamente, tive uma infância e adolescência muito ligada aos meus pais, fazendo com que eu reproduzisse algo que eu não era. Então, eu ficava muito…
Acho que todos passam um pouco por esse processo. Nós que estamos meio fora da curva, sempre teremos algum momento em que nos sentiremos o patinho feio da família, o patinho feio no bairro que estamos, na escola que frequentamos. E acho que isso não foi diferente para mim. Ali, quando cheguei no Valores de Minas, tinha meninas que beijavam outras meninas, tinha uma pluralidade de pessoas. Tudo que eu tinha medo de ser, eu via ali as pessoas sendo de uma maneira muito pura, muito honesta. Foi o primeiro lugar que me deu uma virada de chave para eu assumir, para eu ser mais aberta sobre quem eu era.
Em uma sociedade heteronormativa, é comum existir pressão para se assumir publicamente. Como foi lidar com essa pressão em relação à sua família, amigos e/ou trabalho e mídia? E como isso afetou sua vida?
Desde que comecei a estudar arte, nunca foi um problema as pessoas assumirem e falarem sobre sexualidade. Eu nunca tive um problema com isso. Acho que, em Belo Horizonte, todo mundo sabe que eu me relaciono com mulheres. Eu nunca precisei me posicionar sobre isso. Então, acho que lá em Minas, eu nunca tive problemas com isso. Só que depois que saí de Belo Horizonte, uns 4 ou 5 anos, isso foi um pouco mais complexo. Mas “Marte Um” foi um filme que me apresentou para a mídia num lugar onde eu podia falar abertamente de sexualidade, eu sempre pude falar muito abertamente sobre isso sem ter nenhum problema. E eu acho que por eu ter enfrentado tanto a minha família de frente, assumir isso publicamente para mim nunca foi um desafio. Acho que a dificuldade maior que tive foi lidar com isso em casa, mas não no meu trabalho.
Você esperava toda essa repercussão de Menarah? Para você, qual a importância da representatividade lésbica na mídia?
Sendo bem sincera, eu acho que eu esperava. A gente já vem de uma linha do tempo que tem apresentado casais lésbicos na TV, mas sinto que ainda falta muita coisa para ser dita e que as pessoas sabem muito menos do nosso universo do que imaginamos. Então, eu sabia que, independentemente de como essa história fosse contada, as pessoas iam se reconhecer nessa história. Eu não sei se todas as meninas lésbicas e bissexuais, e pessoas da comunidade, assistiriam à novela se não tivesse, por exemplo, Menarah, se não tivesse, por exemplo, Kelvin e Ramiro, se não tivesse, por exemplo, Valéria no elenco, sabe? Eu acho que os nossos corpos, eles são corpos políticos, e, a partir do momento que a gente se propõe a contar essas histórias, a gente não está sozinha. Eu sinto que eu e Renata, a gente não está sozinha, a gente está emprestando os nossos corpos, a nossa matéria de poesia, a nossa matéria de criação enquanto atrizes para contar essa história, mas essa história é nossa. Menah é uma menina negra, classe média baixa, no Mato Grosso do Sul, a Mara é uma mulher mais velha, branca e com uma condição financeira bem diferente da Menah, mas essas duas mulheres se encontram e se apaixonam, então, eu acho que isso é muito incrível! Falar de amor entre duas mulheres e falar de amor entre duas mulheres nesse contexto político e social no Brasil de hoje é muito importante. Então, eu meio que esperava, assim, não no sentido de fazer sucesso ou não, porque para mim fazer sucesso é diferente de fazer sentido, e eu acho que o Menarah faz sentido, e só faz sentido porque outras mulheres se veem na gente, se veem nesse encontro, se veem nesses desencontros, nessas mil coisas, né? Agora está entrando Nina também, no meio da jogada, então, acho que isso tem muito a ver com o nosso universo, e eu sabia que as pessoas iam se ver nisso, assim, desde o início.
Qual é o significado do orgulho para você? Como você expressa seu orgulho em relação à sua orientação sexual?
Eu acho que o orgulho para mim, além de toda essa sociedade, além de toda essa estrutura, é a gente resistir e a resistência está muito nesse lugar de a gente não abrir mão de ser o que a gente é, de amar quem a gente ama, de fazer as nossas escolhas e não pensar muito no outro. Eu sou muito uma pessoa da empatia, mas eu acho que na hora de compreender o que eu quero e o que eu não quero do mundo, acho que é muito importante a gente pensar só em nós. As minhas escolhas só eu mesma vou poder fazer, eu não posso abrir mão delas por medo do que as pessoas vão achar ou por medo do que o outro vai achar. Acho que a gente tem que bancar, orgulho para mim é sobre bancar e sustentar as coisas, assim.
Em sua opinião, qual é o papel da internet e das redes sociais para a visibilidade e aceitação da sexualidade?
Eu acho que o papel da internet é de respeitar e de normalizar. Eu acho que o grande problema da sociedade é que a gente não normaliza as coisas que são humanas. E eu acho que a internet, nesse sentido, tem essa função de neutralizar, de normalizar os processos humanos de cada pessoa. Tipo, hoje eu me leio como uma mulher bissexual, pode ser que daqui a alguns anos eu me veja como uma mulher lésbica ou me veja como uma mulher heterossexual e, tipo, isso não tem que ser um tabu. Eu acredito que as fases da vida, da humanidade, são muito interligadas com a natureza e a natureza se modifica o tempo inteiro, ela é muito fluida e eu não consigo me ver separada disso. Então eu acho que a gente pode sim usar, tipo, esses meios de comunicação para trazer esse tipo de debate.
Como é para você ser uma figura de representatividade na mídia da comunidade, você sendo uma mulher bissexual e negra? Como você se enxerga nesse papel de ser um modelo ou até mesmo uma voz para a comunidade?
Eu tenho uma mestra lá em Belo Horizonte que sempre falou para mim: você está sendo treinada para ser uma liderança. Então, eu sempre tive isso muito vivo na minha mente e eu sempre tentei, e tento ser uma pessoa muito coerente e muito verdadeira nos meus posicionamentos. Então, eu sempre, muito antes de entrar na mídia, eu tive essa postura com a minha comunidade. Eu sempre fui uma menina que, dentro da minha comunidade, mobilizei coisas, criei coletivos, eu era uma voz que respondia pela juventude de Santa Luzia. Eu tenho essa consciência muito viva para mim. Se você chegar em Santa Luzia hoje, as pessoas sabem quem eu sou e sabem do meu corre, sabem que eu não estou onde estou por sorte ou por nada parecido, que foi pelo meu trabalho, que foi pelo quanto eu me dediquei. Eu sei que estou sendo representatividade para várias meninas que nunca se viram, né? Eu nunca me vi na TV. Então, hoje eu sinto que eu posso ser a menina que eu não vi na minha época e eu acho isso muito bonito. E é uma responsabilidade e tal, mas ao mesmo tempo é num lugar muito majestoso, assim, eu acho isso muito africano, muito ancestral de ter uma consciência também do que eu estou vivendo agora são coisas que mulheres muito antes sonharam, sabe, por mim, pra mim e por elas. Eu estou vivendo coisas e chegando num momento da TV que, por exemplo, Ruth Souza não conseguiu, Zezé Mota teve que passar muitas coisas, essas mulheres tiveram que passar muitas coisas para que eu tivesse hoje aqui, então acho que é ter essa consciência também e a partir disso construir um caminho coerente, eu quero construir uma carreira coerente, eu quero ter uma carreira muito digna, honesta, porque isso são valores que são importantes para mim, são valores que eu realmente acredito que a humanidade precisa resgatar.
Em algum momento a exposição da sua sexualidade afetou o seu trabalho? Se sim, como você lidou com isso?
Não, eu nunca fui demitida, nunca fui perseguida, mas eu acho que a minha sexualidade me atrapalhou, porque eu me apaixono demais, eu já me apaixonei por várias pessoas no ambiente de trabalho e aí isso é meio complicado. Nesse sentido me atrapalhou, porque eu sou virginiana, então eu sou muito certinha, gosto das minhas coisas muito organizadas e aí eu acho que quando a paixão veio para mim nesses ambientes de trabalho foi um negócio que me bagunçou muito, que me tirou muito do meu senso de organização, é quase que, tipo, isso não estava no plano, então o que é que eu vou fazer? Mas eu nunca fui prejudicada, assim, acho que não, nunca fui prejudicada.
Quais os desafios da sua trajetória até o momento atual? E os processos para você chegar onde está?
Eu acho que a adaptação. Cada lugar que eu vou, eu começo a absorver um pouco da cultura, das características, da estética do lugar. Eu acho que isso, pra mim, é o mais complicado, esse entendimento de cada lugar que eu chego, de pegar o fluxo do tempo. Aqui no Rio de Janeiro, eu super tenho dificuldade pra dormir aqui. Eu durmo muito mal no Rio. E eu sinto que isso tem muito a ver com o quanto eu ainda não me conectei com a cidade. E, assim, quando eu estava na Bahia, por exemplo, eu dormia super bem. Então, eu sinto que, por exemplo, a Bahia em relação ao Rio de Janeiro foi um lugar que eu me conectei mais com o tempo, com o fluxo do horário, com as coisas. E eu acho que essa é a maior dificuldade que eu tenho. Fora a cultura das pessoas. O jeito que cada pessoa se relaciona. Eu sou uma menina, uma mulher suburbana, sabe, de Minas Gerais, meio do interior, assim. Então, estou aqui no Rio, capital, a galera tem um outro ritmo. Eu sinto que as pessoas da minha idade aqui têm um outro jeito de pensar sobre o amor, de pensar sobre as relações, de pensar sobre as coisas. E aí, eu acho que, pra mim, essas são coisas que pegam, essa adaptação de entender o tempo da cidade, o tempo das pessoas. E eu acho que lidar também com as outras linguagens, porque eu sou uma pessoa que veio do teatro, da dança, que tem uma formação, um campo de pesquisa na dança, na performance. E as experiências que eu fui tendo começaram muito no cinema e agora estou tendo essa primeira experiência de trabalhar na TV. Eu sinto que é uma outra linguagem, que é um outro tempo, um outro feeling. Então, tem esse processo de adaptação também. O quanto tem disso aqui que me faz bem e que não faz, e como que eu administro isso e levo para esse lugar do aprendizado. Nem tudo que a gente vivencia, a gente vai necessariamente estar curtindo. Mas tem coisas que a gente precisa viver para entender o que a gente não quer. E acho que esses lugares que eu passei, tanto aqui no Rio, quanto na Bahia, eu tive uma oportunidade também de sair do país e ficar um tempo fora. Então, é uma outra linguagem, uma outra cultura. Acho que isso que é o mais desafiador, porque você vai com o que você tem. Você vai com a sua malinha de mão e lidando, na maioria das vezes, com coisa que você nunca viveu. E você tem que se adaptar àquilo ali, em algum lugar. E eu acho que isso é o mais bizarro, mas ao mesmo tempo o mais bonito e mais desafiador. Eu gosto de ser desafiada, né. Eu sou uma mulher que quanto mais eu sinto que eu estou sendo desafiada, mais eu quero entrar de cabeça.
O que te motivou a trabalhar como atriz? Qual a parte preferida nessa carreira e a parte que menos gosta?
O que me incentivou a ser atriz? Cara, eu acho que foi porque eu me encontrei. Eu estudei numa escola de arte que era tudo muito interligado, e isso tem muito a ver também com a cultura de matriz africana. As coisas serem muito interligadas entre si para que elas funcionem perfeitamente. Então, o teatro veio muito nesse caminho da dança, do gesto, do gestual. Sempre foi uma coisa que eu gostei muito. Eu sou muito do gesto. E eu gosto muito das palavras. Eu gosto muito de contar histórias. E eu venho de uma formação de contar histórias. Tudo que eu aprendi foi ouvindo histórias. Então, acho que nesse lugar, o teatro, a interpretação, ela é muito interessante. Porque eu posso contar histórias e ser coisas que talvez eu só sou no meu íntimo, sabe? E que, às vezes, eu não externo isso para o mundo. E aí eu posso viver personagens que eu não me extrapolo. Eu posso viver uma menina, tipo, lésbica, sumidaça. Ou eu posso viver, sei lá, um espírito. Eu fiz um filme ano passado que eu fazia um espírito, sabe? Um espectro. Então, tipo, eu posso viajar no mundo espiritual, nos mundos. E isso eu acho muito fantástico. Porque a vida é bem enquadrada, é bem enxata. E eu acho que a arte, ela dá esses respiros para a gente ser tudo o que a gente quiser ser.
E eu acho que a parte ruim é o ego. O ego, a fama, o sucesso. Acho que isso tudo são caminhos bem perigosos para mim. Para mim sempre foi muito mais importante fazer sentido do que fazer sucesso. Para mim não importa quantas pessoas sabem quem eu sou. Importa que as pessoas que sabem quem eu sou, vão saber quem eu sou pelo meu trabalho. Ou porque elas se viram em alguma coisa. Que realmente a minha figura mudou alguma coisa na vida dessas pessoas. Eu acho que a arte tem que ter essa função também. E quando a gente vai muito para o campo do ego, a gente se perde. Porque o ego, ele machuca muito, ele cria muitas expectativas. Ele vislumbra demais. E eu não tenho esses vislumbres.
Se você pudesse dar um conselho para si mesmo quando estava lidando com o medo em relação à sua sexualidade, qual seria?
Eu acho que eu ia dizer para eu ficar mais relaxada. “Tipo, relaxa. Vai ficar tudo bem.” Você está só começando. Eu acho que a gente é cheio de começos, assim. Eu lembro que a Camila de uns seis anos atrás, dez anos atrás, eu tinha muito medo do novo. Hoje em dia eu não tenho muito medo do novo. Eu saio sozinha, vou para lugares que eu nunca fui antes sozinha, viajo sozinha, faço coisas sozinha. Eu sou hoje uma mulher que me proporciona muito a viver o novo. Sem medo algum do que isso pode me causar, sabe? Eu acho que eu posso ter tanto experiências positivas quanto negativas e eu não tenho medo disso. Eu acho que eu diria para a Camila, lá atrás, para ter menos medo. Que talvez ela teria vivido mais coisas. Acho que é não ter medo. Eu falo que diante do medo, eu preciso de coragem. Tinha um professor meu na faculdade que fala isso: Arnaldo Varenga. Ele sempre falava para gente: coragem! Precisa de coragem. Eu acho que é isso. Coragem, responsabilidade. Eu também tive um professor que falava que na nossa adolescência a gente tinha que tomar muito cuidado como a gente se relacionava com essa primeira experiência do amor. Porque isso pode causar muitos traumas para outras pessoas levarem a vida inteira. Eu sinto que eu já machuquei o coração de outras pessoas de uma maneira que pode ter causado traumas. E eu sempre fui uma pessoa muito tranquila para pedir perdão. Já pedi muito perdão para muitas pessoas que eu senti que eu machuquei. E eu acho que eu diria isso para essa Camila também. Peça mais perdão quando errar. Reconheça quando errar. Porque isso é uma das coisas mais bonitas também. Acho que eu diria essas coisas. Tudo que hoje eu consigo fazer que uma vida inteira eu não consegui fazer. Assim como, sei lá, se fizerem essa entrevista comigo daqui a uns 20 anos eu vou dizer várias coisas para essa Camila. Ela está cheia de medo de um monte de coisas também.