O que transformou ‘Tomates Verdes Fritos’ em um clássico LGBTQ+?

Entretenimento Filmes

Por: Victoria Tuler

Em abril de 2022, a chegada de Tomates Verdes Fritos aos cinemas brasileiros completou 30 anos. Através das décadas, o filme ganhou o status de clássico entre gerações inteiras de lésbicas e bissexuais. Para quem é mais jovem e vive em um mundo que discute as problemáticas da representatividade abertamente, pode parecer peculiar, ou até mesmo revisionista, olhar para a obra como uma produção LGBTQIA+ icônica.  Afinal, as duas protagonistas são caracterizadas como melhores amigas desde o início. Entretanto, é o contexto histórico e criativo da produção que faz toda a diferença.

O longa-metragem é adaptação de um livro chamado Tomates verdes fritos no café da Parada do Apito, escrito por Fannie Flagg e originalmente publicado em 1987. A premissa é simples: numa cidadezinha do Alabama, a vida da dona de casa Evelyn se cruza com a de Ninny, senhora solitária que mora em uma casa de repouso. Ninny presenteia Evelyn com histórias da pequena comunidade em que ambas vivem.

Todas as anedotas narradas giram ao redor do café gerenciado por Idgie e Ruth, um casal lésbico que administra o estabelecimento para ser um espaço seguro que acolhe a qualquer tipo de pessoa — sobretudo negros, que eram excluídos e desumanizados por políticas racistas durante o período da segregação racial nos Estados Unidos, cujo ápice acontece no momento histórico em que o enredo se desenrola.

A publicação não deixa dúvidas sobre a natureza romântica do relacionamento entre Ruth e Idgie, duas personagens que se apaixonam na adolescência, durante férias de verão, e permanecem juntas até o fim da vida. Um dos primeiros pontos de virada da obra é um excelente trecho para ilustrar a clareza com que os sentimentos das garotas são retratados:

É engraçado como a maior parte das pessoas pode estar perto de alguém e gradualmente começar a amá-lo, mas jamais saber quando foi que isso aconteceu; mas Ruth sabia exatamente qual fora o seu momento. Foi quando Idgie sorriu e lhe ofereceu o vidro de mel que todos os seus sentimentos ocultos há tanto tempo vieram à tona. Foi aí que ela descobriu que amava Idgie profundamente. Por essa razão começou a chorar naquele dia. Nunca sentira nada parecido e tinha certeza de que jamais voltaria a sentir algo igual.

E agora, depois de um mês, era por amar tanto que precisava partir. Idgie era uma garota de apenas 16 anos e provavelmente não entenderia nada do que ela dissesse. Nem fazia ideia do que estava querendo quando implorara a Ruth que ficasse morando naquela casa. Mas Ruth sabia muito bem e por isso tinha que ir embora. Ela não sabia por que o que mais desejava na vida era ficar ao lado de Idgie. Já pedira em suas preces que Deus a iluminasse, mas não obtivera outra resposta que não fosse voltar e se casar com Frank Bennett, o rapaz de quem estava noiva, e tentar ser boa esposa e boa mãe. Ruth só sabia que não podia dar ouvidos a nada do que Idgie dissesse e que devia seguir a sua vida. Ia fazer a única coisa que podia ser feita.

[…]

— Quer parar com essa gritaria? Você me deixa envergonhada. A casa inteira está ouvindo.

— Não me importo.

— Mas eu me importo. Por que está sendo tão infantil?

— Porque eu amo você e não quero que vá embora!

— Idgie, você ficou maluca? O que vão pensar de uma garota do seu tamanho agindo como não sei quê?

— Eu não ligo.

Ruth começou a pegar as coisas no chão.

— Por que vai casar com aquele cara?

— Eu já disse por quê.

— Por quê?

— Porque eu quero, só por isso.

— Você não o ama.

— Sim, eu amo.

— Não, não ama. Você ama a mim… sabe disso. Você sabe disso!

O livro foi um sucesso comercial absoluto e passou 8 meses liderando a lista de mais vendidos do The New York Times. A adaptação para o cinema foi uma consequência óbvia. Com um orçamento modesto para os padrões de Hollywood, o projeto ficou a cargo de Jon Avnet, que articulou a compra dos direitos após se apaixonar pela história.

Contudo, ao contrário da literatura, que depende de menos agentes, cifras e patrocinadores em sua cadeia de produção, a indústria cinematográfica enquanto meio de comunicação de massa contava com uma série de obstáculos para que uma comédia romântica sobre lésbicas fosse distribuída.

Entre as décadas de 80 e 90, a epidemia de AIDS desempenhou um triste papel crucial para moldar uma agenda homofóbica no imaginário norte-americano. Pesava na equação o período de guinada conservadora que os Estados Unidos atravessavam. Justamente durante a crise do HIV, o país era presidido pelo republicano Ronald Reagan, cujo slogan de campanha era “Let’s make America great again”. Soa familiar?

O pânico moral e a desinformação generalizada promovida por políticos e líderes religiosos estigmatizaram a doença como “a praga gay”. Em 1982, ao ser questionado sobre as medidas tomadas pela Casa Branca para frear o contágio, o secretário de imprensa de Reagan, Larry Speakes, gargalhou e fez uma piada sobre o assunto.

Reprodução

Embora homens gays fossem os principais alvos da homofobia institucional, toda a comunidade LGBTQIA+ sofreu com a discriminação e a violência. A narrativa de que qualquer pessoa que fugisse aos padrões normativos de sexualidade e gênero simbolizava uma ameaça estava profundamente enraizada no contexto sociocultural. Por isso, em 1991, quando Tomates Verdes Fritos chegou às salas de cinema estadunidenses, era impensável que fosse um filme que falasse abertamente sobre duas mulheres vivendo um romance saudável, funcional e feliz.

Outras particularidades referentes ao marketing do longa também dificultaram a abordagem de um relacionamento lésbico.

Thelma & Louise (outro filme que, concidentemente, também foi formativo para que uma geração de meninas compreendesse melhor a própria identidade), lançado em maio de 1991, foi um estrondoso sucesso com sua mensagem potente e combativa sobre empoderamento feminino e resistência à misoginia estrutural. O público estava condicionado a abraçar outras narrativas sobre amizade entre mulheres. A cereja do bolo foi que Tomates Verdes Fritos estreou em 27 de dezembro do mesmo ano. Pela sazonalidade, era fundamental que a obra fosse vista como uma opção leve e agradável para toda a família, como pedem filmes de fim de ano. Não é preciso dizer que uma história LGBT não se encaixava nessa categoria.

Apesar desses entraves, a razão pela qual o título é tão querido pela comunidade lésbica é o poder de criar imagens que transmitem o amor (romântico!) entre Ruth e Idgie. Apesar da construção literal ser a de uma grande amizade digna de Sessão da Tarde, todos os códigos que caracterizam uma paixão estão lá — os olhares, sorrisos, toques. As personagens dividem todos os aspectos da vida, inclusive a casa, a empresa e o filho que criam juntas. Contribui também a química fantástica entre as intérpretes, Mary Stuart Masterson e Mary-Louise Parker.

As situações de cumplicidade que a dupla atravessa, bem como a resiliência para superar acontecimentos muito difíceis que vão da violência ao luto, encantou a comunidade LGBTQIA+ por se parecer muito com o que um casamento feliz e duradouro deveria ser. Numa época em que os debates sobre representação lésbica eram inconcebíveis, ver sequências domésticas como a clássica cena da cozinha (que, a propósito, o diretor Jon Avnet afirmou ser uma metáfora para a intimidade de uma relação sexual) fomentava a imaginação, e abria horizontes para um futuro em que fosse possível ter uma existência calma e tranquila mesmo que sua parceira fosse uma mulher.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *